Frida Kahlo, Auto-retrato com macacos ( 1943)
O Estrangeiro de Albert Camus: um romance politicamente incorrecto?
(Editora Livros do Brasil, Tradução de António Quadros, 2012)
Isto é politicamente correcto, eis uma expressão que se tornou hoje comum quando nos referimos a comportamentos ou atitudes ditadas pelas convenções ideológicas que assentam na recusa de qualquer tipo de descriminação social, racial, sexual ou outra. O cuidado em não ferir susceptibilidades leva, como se sabe, a um gosto especial pelo eufemismo que, no seu desejo de limar ásperas verdades, vai tecendo um manto de boas maneiras que nos envolve com o calor irresistível do sentimentalismo. Com efeito, o Politicamente Correcto gosta da lágrima, dos afectos e apela constantemente aos bons sentimentos obrigatórios. Manifestar em público ou mesmo em privado indiferença pelas vítimas (o Politicamente Correcto tem vindo a alargar o leque das vítimas) ou pelo destino de próximos (amigos ou familiares) é um acto de coragem que que muito poucos ousam manifestar. Nas palavras do escritor Milan Kundera, vivemos no reino do Kitsch, no qual se exerce a ditadura do coração (A Insustentável leveza do ser).
Central na sociedade contemporânea, este tema tem sido tratado por romancistas, filósofos, sociólogos e artistas .Se a arte com maiúsculas é sempre pioneira, ao conseguir rasgar a cortina do presente e vislumbrar clarões do futuro, podíamos considerar este romance de Albert Camus (1913-1960), um texto premonitório sobre o Politicamente Correcto. Para o percebermos, f açamos um breve resumo do romance.
O Estrangeiro narra a vida pacata de Mersault, empregado de um escritório. Trabalhar, ir à praia, namorar, estar com os amigos, ir ao cinema, eis uma vida que o satifaz plenamente. Quando um dia o patrão o sonda sobre uma possível mudança para Paris, onde teria mais responsabilidades e uma carreira promissora, eis a reacção de Mersault:
Respondi que nunca se muda de vida, que em todos os casos as vidas se equivaliam e que a minha aqui, não me desagradava. Mostrou um ar descontente, disse que eu respondia sempre à margem das questões e que não tinha ambição, o que, para os negócios era desastroso. Voltei para o meu trabalho. Teria preferido não o descontentar, mas não vejo razão alguma para modificar a minha vida. Pensando bem, não era infeliz. Quando era estudante, alimentara muitas ambições desse género. Mas, quando abandonei os estudos, compreendi muito depressa que essas coisas não tinham verdadeira importância.
Desprovido de ambição, é feliz na cidade de Alger. Tratando-se, no entanto, de um dos mais icónicos romances da literatura ocidental da primeira metade do século XX, o leitor adivinha que o romance não podia limitar-se a uma vida assim tão prosaica. Um crime vai então fazer explodir o quotidiano pacífico do herói. Como? O que leva este homem calmo e pacato a cometer um crime? Um puro acaso, como pode acontecer por vezes na vida de um ser humano.
Raimundo, um dos seus amigos, envolvera-se com uma rapariga árabe. Ela deixa-o e ele vinga-se. O irmão da rapariga decide, por sua vez, vingá-la e o confronto dá-s uma tarde de domingo, na praia, na presença de Mersault. Depois da luta, Mersault e o amigo regressam a casa para tratarem da ferida de Raimundo. Nessa mesma tarde Mersault regressa à praia. Leva no bolso a pistola que tinha tirado das mãos do amigo, com medo que ele cometesse uma asneira. Esta asneira será ele, Mersault, a cometê-la uns instantes depois: quando, sob um sol escaldante, caminha na praia, vê a certa altura um dos árabes estendido na areia. Este, julgando que Mersault está ali para vingar o amigo, levanta-se e puxa de uma faca. Nesse instante Mersault dispara. É preso e acabará por ser condenado à morte.
O mais curioso, no entanto, é Mersault ser condenado não propriamente por este crime, mas pelo seu comportamento politicamente incorrecto de que as célebres páginas inaugurais do livro são um claro testemunho:
3.NÃO CHORAR NO ENTERRO DA MÃE
Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames". Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.
O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilómetros de Argel. Tomo o autocarro das duas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite.
Entretanto, durante o velório, sente-se cansado, doem-lhe os rins, queixa-se do cansaço, do calor e diz, finda a cerimónia do enterro: depois tudo se passou com tanta rapidez, tanta naturalidade, que já de nada me lembro.
Mas no caminho de regresso a Argel lembra-se ainda de algumas cenas que vai enumerando:
a terra cor de sangue que atiravam para cima do caixão da mãe, a carne branca das raízes que se lhe juntavam, ainda mais gente, vozes, a aldeia, a espera diante de um café, o incessante roncar do motor, e a minha alegria quando o autocarro entrou no ninho de luzes e Argel, e eu pensei que me ia deitar e dormir durante doze horas.
No dia seguinte, um sábado, Mersault vai para a praia onde encontra uma amiga, Maria Cardona, com quem passa a noite, depois de uma ida ao cinema. E a sua vida vai correndo assim, rotineira e feliz, até ao dia do crime. No tribunal, interrogado sobre a razão do crime, diz que foi o sol, um sol escaldante que lhe teria feito perder consciência. Um acto irracional, impossível de compreender. que Mersault aceita como uma evidência que dispensa explicações. Mersault aceita o seu destino, recusando defender-se. Matou e pagará por isso.
As testemunhas são ouvidas e mesmo quando não têm a intenção de o acusar- como acontece com Maria quando conta a ida à praia e ao cinema no dia seguinte ao enterro da mãe de Mersault-, apercebem-se, mal acabam de falar, de que há verdades ectos Inconvenientes, pelos quais pagamos caro. Assim, para seu espanto, Mersault vê desfilar, ao longo do processo, sempre a mesma acusação: sofre de uma atroz Insensibilidade.
Percebe que não é pelo crime que está a ser julgado, mas pela sua personalidade. Um homem que não chorou no enterro da mãe, que no dia seguinte ao enterro foi à praia, de seguida assistiu a uma comédia de Fernandel e passou a noite nos braços de uma mulher, um homem destes será digno de absolvição? O que é a morte de um homem comparada com esta monstruosa insensibilidade, perguntam os juízes. Eis, pois, umas das perguntas que este romance coloca.
Sabemos que esta questão é velha como o mundo, que para sobrevivermos temos de mentir, isto é, nas palavras de Camus (no prefácio deste romance), temos de dizer não só o que não sentimos, mas mais do que sentimos. Temos, pois, de ser politicamente correctos.
E sobre a felicidade em Camus, veja o que diz Marcello Duarte Mathias no Guia de Bordo