Erasmo retratado por Hans Holbein
1. Quem foi Erasmo?
A maioria dos jovens que todos os anos ingressa no Programa Erasmus- criado em 1987- não tem ideia de quem foi Erasmo. Alguém importante, certamente, mas quem, ao certo, não sabem dizer. Esta situação é bastante comum. Quantas vezes já não nos aconteceu perguntar: mas afinal hoje é feriado porquê? Quem foi esse tal? Isto, passados anos de o festejarmos.
Quando determinadas personagens entram na História, Olimpo dos Gloriosos, aceitamo-los muitas vezes sem lhes pedirmos contas. Se ascenderam a tão alto posto é porque o mereceram e do Olimpo onde brilham, a luz que nos chega é suficiente e dispensa perguntas. Basta-nos saber que estão lá, como um farol. Basta-nos saber que se mantêm sempre acesos. Basta-nos saber que se mantêm sempre disponíveis. Isto chega, como consolo. Saber que existiram homens como Erasmo é um destes consolos.
Homem frágil, de saúde débil, foi um dos primeiros a provar que se podem mover montanhas através da escrita. Os seus livros deram-lhe uma celebridade tal, que se tornou o homem mais célebre da Europa Renascentista, o mais procurado por príncipes e poderosos ( entre uma série de convites, recebeu um, do rei D.João III, para leccionar em Coimbra), o guia, a estrela de toda a Europa ilustre. Hoje, poderíamos quase dizer, o guru.
Ora, foi isto precisamente o que ele nunca quis ser. Tarefa nada fácil, pois para quem é consciente de deter tal poder nas suas mãos, a tentação é enorme. Mas foi a atitude invulgar deste homem que tinha o mundo aos seus pés, que fez dele o que ele foi: se Erasmo amou os clássicos de um amor incondicional, se amou a Europa como nenhum outro antes dele, se amou a cultura europeia com uma curiosidade constante e inabalável, a sua obsessão, a sua paixão foi só uma: preservar, por todas as formas, a sua independência e liberdade. Numa época em que um escritor ou artista sem um mecenas ( e as lisonjas e os compromissos a que isto obrigava) estava condenado a pedir esmola, a atitude de Erasmo paira sobre tudo o que de melhor escreveu como a sua verdadeira obra-prima.
Erasmo- que nasce em Roterdão em 1467 e morre a 11 e julho de 1536, na Basileia- é um incansável viajante. Sentia-se na Europa como em sua casa. É o primeiro Humanista europeu. Acredita que, pelo estudo, saber e cultura, o ser humano pode aperfeiçoar-se e a sociedade progredir. Mesmo no fogo cruzado das guerras religiosas, ele acreditou nos valores humanistas da educação como factor de progresso. Se a Europa é o maravilhoso continente que conhecemos (mesmo se atravessa, como já aconteceu tantas vezes, um período menos feliz) isto é obra indiscutível de homens como Erasmo e outros que se lhe seguiram.
Viveu durante a primeira grande convulsão europeia: a Reforma. Erasmo foi pioneiro na denúncia dos poderes e abusos da Igreja. Num livro delicioso, O Elogio da Loucura- escrito em 1508 e dedicado ao seu grande amigo Tomás Moro, que seria condenado à morte em 1535 por Henrique VIII de Inglaterra- Erasmo coloca em cena uma personagem- a Loucura- e através dela diverte-se não só a dissecar todas as grandes e pequenas loucuras do ser humano, como, por detrás desse disfarce não poupa ninguém, nem ricos, nem poderosos, nem a Igreja.
Sabiamente contornadas pelo tom jocoso, a Igreja não é poupada a críticas acérrimas. Os teólogos, diz, são uns pedantes fanáticos, que não compreendem uma ironia e se abespinham por uma bagatela. Quem não pensa como eles, é imediatamente acusado de heresia, espantalho de que vulgarmente se servem para atemorizar os que os não honram com a sua benevolência. Deleitam-se, diz Erasmo a atemorizar os infiéis com o Inferno, e fazem uma descrição tão exacta do inferno e de tudo o que ele encerra, que dir-se-ia que lá passaram vários anos.
Não imaginava certamente, quando escreveu esta sátira, o banho de sangue em que a Europa iria mergulhar. A Reforma alastra pela Europa e Erasmo, pressionado para tomar partido e aderir a um dos movimentos, recusa. Até à morte recusa filiar-se e defende uma total independência. Nos dois partidos- católico e reformista- vê ideias e princípios de que discorda. Sabia também que aderir a uma das facções equivaleria a embarcar na maior e mais gigantesca barca de loucos: a Guerra, que só precisa de um fósforo para atear um fogo devastador, como veio a acontecer. A posição de Erasmo explica-se também por um outro facto: o seu amor incondicional pela Europa, que ele não queria ver desunida.
2. Geração Erasmus: conquistas e ameaças
Pertencemos todos à Geração Erasmus. E acredito que todos os europeus sentem esta satisfação: a de serem os “pais” de uma geração que não tenciona guerrear-se. Nenhum português pegará em armas contra um alemão, nenhum francês pegará em armas contra um italiano, nenhum espanhol pegará em armas contra um grego. Isto é já um grande motivo de contentamento para nós todos, europeus. Uma conquista de que nos podemos orgulhar.
Mas cuidado: estes pacíficos conquistadores, embevecidos com os troféus das suas conquistas, podem não dar pela chegada dos mensageiros da morte, sempre silenciosos e em pezinhos de lã: os euro-cépticos. Na calada do sono, ei-los a espetarem nos conquistadores adormecidos alguns dardos envenenados: a dúvida no ”balofo Humanismo”; a troça de certos guias ingénuos como Erasmo. “Olhem só para ele”, dizem os cépticos, “não se vê logo que era um lírico, sem músculos, sem força”?
Os euro- cépticos têm muitos argumentos poderosos; mas há um que estão sempre a tirar da manga: ”as duas guerras que a Europa viveu, quase ininterruptamente”, dizem, “não provam de que o saber e a educação não têm força alguma quando em cena estão ódios ancestrais? Esse discurso da tolerância e da paz não será ingénuo e, por isso, perigoso? O humanismo já não deu provas suficientes que é sistematicamente esmagado pela barbárie? O que vemos todos os dias pelo mundo não o demonstra claramente? Qual o sentido desses discursos bem pensantes? “
Ora, há muitas e variadas razões para que o legado de Erasmo continue a inspirar-nos e a distanciar-nos destas vozes. Escolho uma, que um dos seus biógrafos, Stefan Zweig, viu com a sua agudeza habitual:
São precisamente os sonhos que não se podem efectivar os que se mostram mais invencíveis. Uma ideia que não se realiza não perde por isso o seu valor e não fica provado que seja falsa; uma coisa necessária, mesmo que se ponha de parte, não é por isso menos necessária.
Só os ideais que não são realizados e que, assim, ficaram puros, continuam a fornecer a cada geração um elemento de progresso moral; só esses são eternos. É por isso que o facto do ideal humanista erasmiano, essa primeira tentativa de entendimento europeu, nunca ter prevalecido e quase não ter exercido influência na política, não significa de forma alguma que sofresse uma desvalorização espiritual (…) Nunca a crença numa futura comunidade de todos os homens será completamente abandonada, por mais perturbada que seja a época.
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